domingo, 12 de setembro de 2010

Nas profundezas dos Cárpatos, parábolas pintadas em mosteiros romenos

Quando o príncipe moldávio Estevão, o Grande, conquistou sua primeira vitória decisiva contra os turcos há cinco séculos e um quarto, ele decidiu marcar a ocasião com um grande mosteiro e adornar suas paredes com as obras coloridas dos artistas da época. Com sua segunda vitória veio outro mosteiro. Com a terceira, mais outro.

O resultado de suas vitórias – 46 ao todo – foi uma onda de construção sem precedente dentro do terreno altamente coberto por floresta da região de Bucovina, na Romênia moderna. A tradição foi adotada por seu filho e sucessor, Petru Rares, e seus vassalos. Muitos dos mosteiros e igrejas cobertos por murais sobrevivem, aninhados em um vale e resistindo ao forte calor do verão e aos ventos do inverno por séculos. O que começou como troféus de guerra de Estevão, o Grande, agora se transformou em uma das obras de arte mais impressionantes do mundo.

Elas existem agora como o atual Mosteiro de Voronet, a cerca de cinco quilômetros ao sul do vilarejo romeno de Gura Humorului, e seus santuários irmãos, espalhados por um raio de aproximadamente 40 quilômetros e reconhecidos coletivamente como Patrimônios da Humanidade pela Unesco.

Localizar a área que contém este tesouro não é fácil. A região, que se tornou o posto avançado oriental do Império Austro-Húngaro, agora é dividida entre a Bucovina do Sul, no nordeste da Romênia, e a província de Chernivtsi, na atual Ucrânia. Para complicar ainda mais, alguns romenos também se referem a ela como Moldávia do Norte, que não deve ser confundida com a independente República de Moldova, que faz fronteira com o nordeste da Romênia. Mas há um bom motivo para se fazer a viagem, apesar da confusão geográfica e das estradas esburacadas, como fiz no ano passado.

Dirigindo pela Passagem de Prislop, nas encostas norte dos Montes Cárpatos, no Parque Nacional Muntii Rodnei da Romênia, eu tive meu primeiro vislumbre da área, uma expansão verde vertiginosamente densa de florestas virgens. As árvores não davam pista do tesouro que escondiam. Eu tinha escolhido um quarto na Casa Felicia, uma pensão vizinha a um mosteiro no vilarejo de Sucevita, como base. De lá eu embarquei em uma visita autoguiada aos mosteiros e seus murais.

Historiadores de arquitetura descreveram as igrejas e mosteiros, algumas em forma de gnomo com chapéu inclinado, como igrejas bizantinas construídas por mãos góticas. Na igreja e mosteiro de Voronet, eu descobri que nenhum rótulo faz justiça às imagens que cercam seu exterior. Como um livro de imagens aberto, suas páginas se agitando com a brisa, cada superfície é coberta com pinturas do Velho e Novo Testamento, assim como lendas locais e as vidas de santos

Voronet permaneceu um mosteiro até o século 18, quando ocupantes habsburgos expulsaram os monges, e ficou desabitado até 1991, quando uma comunidade de freiras dedicadas à Ordem de São Jorge ali se instalou. Há visitas regulares, apesar da maioria em romeno. Durante minha visita, uma irmã de rosto fechado, idade indeterminada e certa severidade ofereceu uma rápida visita em inglês. “Perguntas, não!” ela meio que ameaçava em intervalos regulares, brandindo um ponteiro que poderia servir como açoite; ninguém ousava levantar a mão.

Mas você não precisa falar romeno para entender o significado dessas parábolas pintadas. O famoso “azul Voronet” do padrão de cores, obtido com lápis-lazúli moído, tem um enorme poder, como se o céu tivesse descido para saturar a superfície. As cenas de inspiração bizantina, extremamente expressivas, ilustram o Livro do Gênese na parede norte, incluindo uma Eva de aparência perplexa, recém-formada a partir da costela de Adão.

Uma alta Árvore de Jessé azul-celeste sobe a parede sul, traçando a genealogia de Jesus até o rei Davi, e é emoldurada por um anel de filósofos clássicos. Ao sobrepor temas do Velho e Novo Testamento com retratos de filósofos gregos, a pintura afirma fortemente a ligação cultural com a tradição ocidental, diferente da tradição dos invasores otomanos.

Construída em 1488, em uma época de relativa paz, o mosteiro murado servia também como fortaleza militar, caso fosse preciso. Seus afrescos foram pintados meio século depois, a maioria por mestres anônimos, com exceção de um certo Marcu, que gravou seu nome à esquerda da entrada. As imagens neste e em outros mosteiros de Bucovina visavam instruir, entreter e iluminar os soldados e camponeses analfabetos e reforçar sua lealdade.

O amplo Juízo Final, conhecido como a “Capela Sistina do Oriente”, cobre todo o muro oeste e martela a mensagem. Moisés se esforça para liderar o chamado à salvação no trono de Cristo Pantocrator (Todo-Poderoso), enquanto os judeus céticos permanecem entre os turcos e tártaros, aguardando para caírem no inferno. É uma descrição assustadora, apesar de fabulosamente divertida e épica, a superprodução muda de D.W. Griffith da época.

No Mosteiro de Humor, na aldeia de Manastirea Humorului, a cerca de 6 quilômetros ao norte, o tom dominante dos afrescos exteriores é um vermelho amarronzado baseado em rubia que aumenta o atrativo da igreja, como se fosse um cogumelo mágico gigante brotando da terra. Ele foi construído em 1530 no local das ruínas de um mosteiro mais antigo pelo nobre Teodor Bubuiog, um vassalo fiel de Estevão, o Grande, e Petrus Rares. Humor tem afrescos exteriores, não tão bem preservados, mas semelhantes em estilo e tema aos de Voronet, pintados em 1535 por Toma de Suceava.

Saqueado pelos cossacos e outros invasores e fechado pelos habsburgos, Humor, como Voronet, voltou a ser uma comunidade monástica em 1991. Os baluartes ainda estão intactos. Eu subi as escadas para a torre de vigilância para um vislumbre da igreja em seu interior e uma ampla vista das colinas.

O fundo amarelo baseado em enxofre dá uma aparência de seca pelo sol à igreja do Mosteiro de Moldivita, construído em 1532 por Petru Rares na aldeia de Vatra Moldovitei, a cerca de 30 quilômetros a oeste. Seus afrescos exteriores anônimos em estilos diversos, que indicam a probabilidade de múltiplos artistas, datam de 1537.

Uma incisiva lição de história e um alerta aos fiéis na fachada sul descreve o cerco turco à Constantinopla cristã em 1453, uma das pinturas externas mais dramáticas da região. Enquanto eu me concentrava com um prazer quase infantil na cena de batalha, um espetáculo de soldados montados reunidos ao redor da cidade fortificada, eu fui despertado de meu devaneio decididamente secular por uma freira de passagem, que pareceu ver através de mim, batendo uma toaca, ou placa de oração, usada aqui no lugar de um sino.

Os romenos visitam em grande número o Mosteiro de Putna, não distante ao norte, para adorar no túmulo de Estevão, o Grande, que foi canonizado. Ele fez com que a estrutura fosse erguida de 1466 a 1469 como seu local de repouso final. Pilhada pelos cossacos, a igreja foi reconstruída de 1653 a 1662. Os muros externos são despojados, lhe concedendo uma austeridade diferente do lirismo espiritual de seus santuários irmãos.

Estevão provavelmente teve uma mão na preservação da bela Biserica Dragos Voda, que dizem ser a igreja de madeira mais antiga ainda em pé da Romênia, construída em 1346. Ela foi transferida, viga por viga, em 1468 para um local menos visível, atrás de um cemitério do lado externo dos muros do mosteiro, para protegê-la de ataques dos tártaros

Meu coração não bateu mais rápido no sepulcro de Estevão, mas perto dali ele saltou diante do atrativo primário de Chilia lui Daniil Sihastrul, a caverna do conselheiro espiritual do príncipe, o místico asceta Daniel, o Eremita. Daniel escavou a caverna no penhasco e a habitou por 14 anos.

Talvez tenha sido o efeito persistente da palinca caseira, um conhaque de ameixa duas vezes destilado, 60%, que Trandafir e Felicia Cazac serviram no jantar em sua pousada, a Casa Felicia. Após alguns dias de visita a mosteiros, minha faculdade espiritual estava aguçada.

Eu não pude deixar de me emocionar com o contraste entre a falange harmoniosa de anjos pairando em fileiras no alto e o caos dos condenados abaixo, na descrição surreal da “Escada das Virtudes” na fachada norte do Mosteiro de Sucevita, ao lado da pousada. Eu fiquei olhando para minha foto dela até bem depois do jantar. Apesar dos visitantes supostamente se identificarem com os virtuosos, meu olhar ficou pregado na confusão atormentada de demônios e condenados. Dada a história sombria do século 20, esta cena parecida com Bosch parecia assustadoramente presciente. Vários séculos se passaram, mas a violência que arrasaria esta região na Segunda Guerra Mundial e dizimaria sua população parecia prefigurada ali.

Os esforços combinados da Guarda de Ferro fascista romena, das Tropas de Assalto nazistas e do exército de Stalin estão infelizmente documentados, assim como a cultura antes próspera dos judeus de Bucovina, no recém-reformado Lar Nacional Judaico em Chernivtsi, a cerca de 30 quilômetros depois da fronteira, na Ucrânia. Ele agora abriga o Museu da História dos Judeus de Bucovina, que visitei um dia antes.

“Tudo se foi, restaram apenas palavras e imagens”, disse Josef Zissels, o fundador do museu, apontando para uma estante de livros de autores locais. Olhando para os títulos, incluindo “Mohn und Gedachtnis” de Paul Celan, um poeta natural de Bucovina, eu pensei na “Escada das Virtudes” no Mosteiro de Sucevita e naqueles que não sobreviveram à subida.

Dicas para viajar em Bucovina
Para chegar lá

A Tarom, a companhia aérea romena (tarom.ro), voa de Bucareste para Iasi, em Bucovina. Uma pesquisa online encontrou passagens por US$ 159 em julho. Ou você pode viajar de trem (cfr.ro) de Gara de Nord, em Bucareste, para Iasi. A Eurolines Romania Touring (www.rentauto-romania.ro) oferece carros para alugar em Bucareste, assim como a Hertz e a Avis.

Onde ficar

Eu me instalei confortavelmente na pensão Casa Felicia em Sucevita (Comuna Sucevita 487, 40-230-417083; eco-romania.ro/en/felicia.php). O quarto, incluindo café da manhã e um jantar delicioso com três pratos e vinho, sai por 80 leus novos, ou cerca de US$ 23 por dia por pessoa, com o dólar cotado a 3,41 leus novos. Uma lista das pensões na Bucovina romena está disponível em ruraltourism.ro/bucovina/html/bucovinaen.html.

Encontrando os locais

O site de turismo da Romênia (romaniatourism.com/painted-monasteries.html) oferece um guia de mosteiros, assim como fotos.

Caverna de Daniel, o Eremita

Para dirigir do Mosteiro de Putna até a caverna, vire à direita na estrada principal e siga as placas até a Cabana Putna. Siga à esquerda na primeira bifurcação, direita na segunda, cruze os trilhos da ferrovia e a pequena ponte até uma estrada de terra que vai direto até o rochedo. (Ou peça informações em Putna.)

Museu da História dos Judeus de Bucovina (Praça Teatralnia, 5, Chernovtsi; 380-372-55-66-06; Ucrânia).

fonte:http://viagem.uol.com.br/ultnot/2010/09/12/nas-profundezas-dos-carpatos-parabolas-pintadas.jhtm

Ismailon Moraes

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