Falecido aos 87 anos em junho de 2010, o escritor José Saramago deixou um legado singular para a humanidade: dezenas de livros nos quais eleva a língua portuguesa à sua forma mais sublime. Para nós viajantes, ele deixa uma obra mais do que especial: Viagem a Portugal. Após décadas de exílio voluntário (mas não sem causa) na Ilha de Lanzarote, Espanha, o autor descobriu e redescobriu, ao longo de meses, as pequenas vilas, as grandes cidades, as paisagens, o povo e a cultura de seu país natal. Logo no prefácio, anuncia: "Às páginas a seguir não se há de recorrer como a agência de viagens ou balcão de turismo: o autor não veio dar conselhos, embora sobreabunde opiniões".
Bem avisados, iniciamos a leitura e seguimos viagem ao lado do expoente da literatura mundial. Quais são os cenários portugueses que mais encantaram Saramago? Adoro Viagem fez uma compilação deles: nem todos são pontos turísticos, pois ele se considera um “viajante”, algumas vezes, um “visitante”, mas nunca um turista, pois “Há grande diferença. Viajar é descobrir, o resto é simples encontrar.”.
As grandes Cidades
Lisboa, a capital portuguesa. Lá, Saramago encontra um banquete cultural. O Mosteiro dos Jerónimos, por exemplo, “é uma maravilha de arquitectura”, e na Torre de Belém “não vê o viajante que utilidade militar poderia ter esta obra de joalharia, com o seu maravilhoso varandim virado ao Tejo, lugar de mais excelência para assistir a desfiles náuticosdo que para orientar a alça dos canhões.”.
Mais adiante: “não se descreve o Louvre de Paris, nem a Galeria Nacional de Londres, nem os Ofícios de Florença, nem o Vaticano, nem o Prado de Madri, nem a Galeria de Dresden. Também não se descreve o Museu das Janelas Verdes. É o que temos, e temo-lo bom.” A Igreja e o Mosteiro de São Vicente de Fora o desmancha em elogios: “uma imponente máquina arquitectónica [...] O interior é vasto, majestático, rico.”
Os bairros mencionados pelo autor são Alfama e o Bairro Alto. O primeiro é descrito como “um animal mitológico”, habituado à vida cosmopolita. É um feito de ruelas e becos, mas é onde nos restaurantes se faz o melhor arroz de cabidela de Portugal. Nas redondezas ficam o Museu Militar e o e o Convento da Madre de Deus, que abriga o Museu do Azulejo, “preciosidade” pouco visitada por turistas.
Já no Bairro Alto, rival de Alfama, lhe impressionam as ruínas da Igreja do Carmo,
intocadas desde o terremoto de 1775, que assolou o país: “Lisboa nunca gostou de ruínas. [...] A igreja do Carmo é excepção. [...] as ruínas são um museu arqueológico. Não necessariamente rico em abundância, sim em valor histórico e artístico.”
Coimbra é a cidade onde fica a mais antiga universidade do mundo, que leva seu nome. Para chegar até ela, Saramago subiu a rua Couraça de Lisboa, que segundo ele é uma subida extremamente cansativa, mas “um bom sítio para sentir Coimbra”. Diante da Universidade, sua timidez foi tanta que não entrou, deixando de conhecer a Sala dos Actos Grandes e a capela de São Miguel. A Sé Nova impressiona por seu aspecto teatral, enquanto o Museu Machado de Castro vale menção por ter “a mais rica colecção estatuária que em Portugal existe”.
Entre as visitas recomendadas estão “a espetacular (o viajante não gosta da palavra, mas não encontra melhor) Capela do Tesoureiro de João de Ruão”, na igreja do Convento de S. Domingo e a Sé Velha, “o mais belo monumento do estilo romântico em Portugal”. Para almoçar, Saramago escolheu o restaurante Nicola: “atendeu-o um daqueles já raros empregados de mesa que respeitam e fazem respeitar a profissão, com o gesto, a palavra, a dignidade. A tudo se juntou um bife tenro e suculento, e tudo fez o manjar real que alimentou o viajante.”
Na cidade do Porto, cidade dominada pelo moderno e pelo antigo ao mesmo tempo, passeou muito pelo Bairro do Barredo e concluiu: “A Rua Escura é um pedaço de arco-íris”. Sobre a beleza da Igreja de São Francisco, confessou: “quem entrar aqui não tem mais a fazer que render-se”. Descreveu a cidade como um lugar quente, colorido e alegre, que contrasta com a frieza da igreja do mosteiro de São Bento, que não lhe agradou. Já o Museu Etnográfico, que fica dentro do palácio de São João do Novo, visitou com “a gula de que não pode e nem quer curar-se”. Mais do que a Sé do Porto, lhe impressionaram a misteriosa Fonte do Pássaro (à qual apelida de Fonte do Pelicano e que fica no Barredo) e a igreja de Santa Clara, de estilo barroco.
Trás-os-Montes
Região Norte de Portugal. É repleta de pequenas vilas de aspecto quase medieval, onde lendas e mitos se misturam com a realidade na mente do povo simples, que dá grande valor aos remédios caseiros, às tradições centenárias e à hospitalidade. Sendim é um vilarejo minúsculo. Lá, a senhora Alice, proprietária do Restaurante Gabriela, ofereceu ao autor um verdadeiro banquete: “uma suculenta sopa de legumes, o vinho e o pão. [...] A posta de vitela, gigantesca, vem numa travessa, nadando em molho de vinagre [...]. O viajante julga estar sonhando. Carne branda, que a faca corta sem esforço, tratada no exacto ponto, e este molho de vinagre que faz transpirar as maçãs do rosto e é cabal demonstração de que há uma felicidade do corpo.”
Azinhoso, uma aldeiazinha, arranca elogios do português: “É em Azinhoso que começa a nascer a paixão do viajante por este romântico rural do Norte.” As construções de mais de 700 anos o arrebatam e o povo hospitaleiro o comove.
Em Vila Real, capital do distrito homônimo, Saramago visita o Solar de Mateus
e o palácio local, onde estão chapas originais das gravuras originais de uma das
primeiras versões de Os Lusíadas. Escreve: “Coisas assim não se descrevem”.
Amarante, no distrito do Porto, é outra vila. Lá, o que mais chamou a atenção dele foram “as soberbas telas” Amadeus, pintadas entre 1909 e 1918, abrigados pelo Museu Albano Sardoeira ainda no distrito do Porto, Vila do Conde guarda o Convento de Santa Clara: “O viajante não pode ficar. Se se deixa prender não sairá daqui, porque esta igreja é uma das mais belas coisas que até agora os seus olhos viram.”
Já no distrito de Braga, Guimarães merece menção pela presença do Museu de Alberto Sampaio: “Declara o viajante que este é um dos mais belos museus que conhece. [...]Este museu merece todas as visitas, e o visitante faz jura de cá voltar todas as vezes que em Guimarães estiver.”
Centro
“Em Castelo Branco todos os caminhos vão dar ao jardim do Paço Episcopal”, um
dos mais belos da Europa. Saramago observa que ao redor das estreitas ruas, há forte presença de vida “moderna, febril e agitada”. O Museu de Castelo Branco não é lá grande coisa, mas proporciona algum entretenimento.
Em Viseu, visitou o Museu Grão Vasco, onde a grande atração é a pintura São Pedro. O viajante observa: “o melhor do S. Pedro não está onde geralmente se procura”. A parte velha da cidade “o viajante percorre devagar, com a estranha impressão de não estar neste século” até chegar à Sé, sobre a qual reflete: “não duvida o viajante de que o turista embasbaque”.
Aveiro é conhecida como a Veneza Portuguesa. “Ir ao Museu de Aveiro é uma
aventura”, reflete Saramago, que fica impressionado com o lugar. Apesar de ter
aproveitado pouco, recomenda uma visita à Catedral de São Domingos, mas conta que o que realmente valeu a viagem a Aveiro foi a igreja de Nossa Senhora da Penha, repleta de pinturas belíssimas.
Alentejo
Ao centro-sul de Portugal, tem como maiores cidades Évora e Montemor-o-Novo.
Abriga castelos e vinhedos numa paisagem rural única. Palmela, alta vila, mereceu elogios do autor por seu bom vinho que “com duas gotas transforma quem o bebe”. Lá, as visitas recomendadas são a Igreja Matriz e a igreja quatrocentista do Convento de Santiago.
Sobre Évora, Saramago discorre: “Em Évora há, sim, uma atmosfera que não se
encontra em outro qualquer lugar; Évora tem, sim, uma presença constante de História nas suas ruas e praças, em cada pedra ou sombra; Évora logrou, sim, defender o lugar do passado sem retirar espaço ao presente.”. A Igreja da Sé lhe comove, mas o Museu da cidade é uma decepção, exceto pela curiosidade histórica de estar lá desde o século V. Outras visitas recomendadas são o belo Lardo das Portas de Mouras, a Igreja de Nossa Senhora da Graça e a Igreja de São Francisco, onde estão pinturas setecentistas Garcia Fernandes.
Em Montemor-o-Novo, só decepções: “Não têm faltado espetáculos desoladores nesta viagem”. O castelo da cidade impressiona por fora, mas é só ruínas por dentro, além de ter difícil acesso. “Da antiga igreja de Santa Maria do Bispo resta o portal manuelino com uma cancela de arame de capoeira, do Paço dos Alcaides carcomidas torres e empenas, a Igreja de São João é um pardieiro”.
Algarve
O Algarve é o sul Português. Muitas de suas cidades recebem grande quantidade
de turistas, atraídos pelo clima e por suas praias. Lá fica Vilamoura, um dos mais
conhecidos complexos turísticos da Europa e que não é mencionado por Saramago. Em Alcoutim, interessou ao autor a igreja local com seus“magníficos captéis das
colunas da nave” e “o baixo relevo do baptistério.” Já em Vila Real de Santo António, irritou-se com o trânsito, o que lhe impediu de
apreciar com paciência o traçado pombalino das ruas.
Em Miróbriga, cidade romana de belos cenários, sua viagem acaba.
“A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem se
prolongar em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o viajante se sentou na areia da praia e disse <>, sabia que não era assim. O fim duma viagem é apenas o início doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.”
Viagem a Portugal – José Saramago. Companhia das Letras, R$52,90
fonte:http://adoroviagem.uol.com.br/materia/especiais/166/portugal-segundo-jose-saramago.html
Ismailon Moraes
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