O paraíso às avessas. Em texturas, retratos e flagrantes que se distanciam dos dias ensolarados, do azul cristalino do oceano, da beleza exuberante de uma Fernando de Noronha que o mundo acostumou-se a enxergar ou a imaginar. Aqui o cartão-postal emoldura uma outra ilha: a República de Noronha. O turista vai e não vê. Ninguém vê. Ninguém sabe dos meninos de pés de plásticos que desafiam a lama para chegar à escola, num ritual tão humilhante quanto cotidiano. O pacote turístico não prevê visitas ao Carandiru, como é chamado o prédio público ocupado por famílias que vivem espremidas em quartinhos, disputando varal e banheiro coletivos. Tampouco passeia pela favela de iglus, que se esconde no quintal do Projeto Tamar. Este, sim, visitado e festejado. Coisa de Primeiro Mundo. Mas quem se arrisca a olhar por trás das maquetes de tartarugas gigantes que enfeitam o local vai descobrir moradores vivendo em casas de zinco, com ratos, mosquitos e paredes que dão choque quando chove.
Foi do exercício incômodo de olhar para muito além do alumbramento que emergiram as imagens deste especial. Nessa outra ilha, aqui desvendada, o dinheiro público destinado à escola é desperdiçado em equipamentos que envelhecem em caixas fechadas; professor morto figura em lista para receber gratificação; salas de hospital viram depósitos; médicos dão diagnósticos errados; livros se estragam para beneficiar interesses privados. As leis na República de Noronha se ajustam às conveniências políticas. São códigos próprios. Estabelecidos em função de práticas nem sempre republicanas. O que é proibido a muitos vira autorização para poucos. Pelo ato milagroso de uma simples canetada.
O que se viu e ouviu quebra o silêncio. Escancara o absurdo. A reportagem espia lá dentro. Entra nas casas, na escola, no hospital, na usina de lixo. E em todos esses lugares descobre flagrantes de irregularidades, má gestão, descaso, abandono, tráfico de influência e desrespeito ambiental. Ao mudar o foco, a paisagem se desloca de lugar. Deixa de ser as praias deslumbrantes, os simpáticos golfinhos, os morros e picos, o fundo do mar. Passa ser a gente da ilha. Não a que passa, tira fotos, gasta milhares de reais, se encanta e vai embora. Mas a que dorme e acorda, com suas crianças e adultos vivendo amontoados por não ter onde morar. É gente que não pode, mas precisa pagar, no mercado negro, R$ 60 mil por uma folha de papel apenas para ter o direito de comprar um carro ou uma moto (o preço do carro e da moto é por fora). Ou que espera meses, anos até, por uma autorização para consertar o telhado de casa ou comprar um vaso sanitário.
Pela primeira vez na imprensa nacional, a ilha paradisíaca fincada no meio do Atlântico ganha as páginas de um jornal para ser descrita e esmiuçada de uma outra forma. Sob uma nova e desconcertante perspectiva. É o antipostal, com as margens pretas, em vez de brancas. Contar o outro lado dessa história trouxe revelações surpreendentes. No esforço de dar voz a quem nunca ousou falar, descobriu-se uma Noronha que respira uma liberdade velada, inimaginável nos atuais dias de democracia brasileira. Uma falta de liberdade que lembra o ar vigiado de uma outra ilha, no Caribe, a ilha do ditador Fidel Castro. Realidades diferentes, mas com similitudes no sentimento de quem vive como se tivesse a alma aprisionada.
Não se descobre a Cuba que Noronha esconde no primeiro momento. No imediato contato. Ela vai se impregnando aos poucos, se revelando em pequenos gestos e preciosos detalhes. Quanto mais se conhece essa outra Noronha, mais parecida com Cuba ela vai ficando. E nada é mais Cuba em Noronha do que a impossibilidade da livre expressão. Não de uma forma escancarada, com sanções publicadas em diário oficial e tanques nas ruas, como ocorre nas ditaduras personificadas por generais autoritários. O regime aqui é outro. A opressão é disfarçada. Acontece da porta de casa para dentro. Justamente por ser camuflada torna-se ainda mais difícil de ser combatida. Não se derruba o que não se vê. Apenas se sente.
É de sentimentos, abafados e escondidos, que é feita esta reportagem. A coragem de trazê-los à tona por moradores cansados de um isolamento geográfico, político e cultural lançou interrogações intrigantes no ar. Como uma ilha com apenas quatro mil habitantes e 17 quilômetros quadrados convive com tantas mazelas sociais e vícios de gestão pública típicos de grandes metrópoles ou de sertões esquecidos? E por que esse outro arquipélago, até então sinônimo de paraíso, demorou tanto para ser descoberto? Nas páginas deste especial, Fernando de Noronha como nunca se viu. Como sequer se supunha existir.
A FAVELA DE ZINCO
Favela em Fernando de Noronha tem nome de presídio. Chama-se Carandiru. É um prédio público, escondido no fim de uma rua enlamaçada e ocupado por famílias que não têm onde morar. São nove adultos e sete crianças disputando o mesmo banheiro, o mesmo varal. Brigando por eles até. Pai, mãe e filhos espremidos em quartinhos sem nenhuma privacidade. Quando chove, tem que colocar prego no forro, porque senão o teto cai na cabeça das crianças. Já ocorreu outras vezes. Toda noite, o medo é que aconteça de novo.
Favela em Fernando de Noronha não é de taipa. É de zinco. O lugar mais parece um ferro-velho, com casas de metal retorcido e queimado. São os iglus. Herança dos soldados americanos. Do tempo da Segunda Guerra Mundial. Lá também ninguém dorme quando chove. É que as paredes dão choque. Vez ou outra um iglu pega fogo. A última vez foi no Carnaval deste ano. Quando viram, o ferro já tinha sido devorado pelas chamas. O local é condenado pelo Corpo de Bombeiros e pela Vigilância Sanitária. Lá vivem 11 pessoas que não têm para onde ir. Por causa dos riscos, a qualquer hora elas temem que uma medida judicial mande o trator colocar tudo abaixo. Até lá, esperam por uma casa de tijolo que nunca chega.
“A gente vai falar com o administrador e ele enrola: ‘Daqui a um mês eu dou a resposta’. Isso é o que ele diz para todo mundo. Mas eu não posso mais esperar. Quem vai responder pela minha morte, do meu neto, do meu filho? Eu vivo aguardando o choque fatal”, desabafa Maria das Graças Caldas, que há seis anos vive na favela de zinco. Nascida em Noronha, ela ganha a vida como guia turística. E se envergonha do lugar ondemora. “Quando os turistas insistem em me deixar em casa, eles se assustam com o que veem. Ficam surpresos que exista favela em Fernando de Noronha. Não me orgulho de trazê-los aqui. Mas não posso viver como fantasma.”
Descobrir as favelas que se escondem no paraíso exige esticar o olhar para além da paisagem. Os iglus condenados ficam por trás do Projeto Tamar, que monitora espécies de tartarugas marinhas ameaçadas de extinção. Dia e noite dezenas de turistas visitam o local para assistir a palestras, comprar suvenires, ver e admirar a Noronha ecologicamente correta que cuida e preserva a natureza. Saem de lá encantados, sem saber que no quintal das famosas tartarugas dona Graça passa a noite acordada com ratos dentro de casa e medo de choque elétrico.
O Carandiru é ainda mais invisível. Só passa pela rua de lama, na Vila do Trinta, onde as famílias se amontoam no prédio invadido, quem vive o dia a dia da ilha. E como é viver num lugar com nome de presídio? Quem responde é Airon Pereira, 28 anos, nascido no arquipélago. “Eu nunca fui preso, mas é um sentimento muito ruim. Pesa na gente. Tento não lembrar desse nome, já que não tenho outra saída”, resigna-se. Ouvir a sua história é acompanhar como a ilha dos ilhéus, de muitos anos atrás, foi se transformando na ilha dos turistas, dos dias de hoje. “As casas onde antes a gente comia e tomava banho viraram quartos de aluguel, pousadas. As famílias vivem espremidas num quartinho no quintal porque a casa foi adaptada para virar hospedaria”, diz.
A fala de Airon sintetiza uma parte da realidade da ilha na questão habitacional. Como o custo de vida em Fernando de Noronha é altíssimo, só ganha dinheiro quem trabalha com turismo. E, para muitos moradores, a única forma de fazer dinheiro é abrindo mão da própria casa para transformar em quartos para turistas. O problema é ainda mais grave porque as famílias se reproduzem, os filhos crescem, casam, separam e não há para onde ir. Ficam todos espremidos no mesmo quartinho nos fundos de casa.
A outra ponta do problema é mais complexa. Diz respeito aos que nem sequer têm casa ou um terreno para morar. Um quartinho em Fernando de Noronha chega a custar R$ 1.000, o aluguel. Para quem ganha R$ 1.200 de salário, como Airon, só resta o Carandiru. Existe hoje uma lista com mais de 300 moradores em Fernando de Noronha esperando casas do governo. Airon diz que tem vergonha de ir na administração e mostrar seu rosto lá. Porque toda vez que ele vai escuta a mesma coisa: “Você é só mais um morador que passa pelo mesmo problema”. Ele é só mais um sem-teto na ilha paradisíaca.
fonte: http://www2.uol.com.br/JC/especial/noronha/arepublicadenoronha.html
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