Em 1873, quase nove décadas antes de Nelson Mandela começar seu calvário de 27 anos no cárcere, um líder chamado Langalibalele, da etnia hlubi, levantava-se contra a colonização branca no sul da África e, detido por subversão, era enviado à prisão de Robben Island, a mesma que encarceraria o Madiba na segunda metade do século 20.
Langalibalele não se transformou em ícone mundial, mas seu nome batiza uma das mais importantes (e menos conhecidas) comunidades negras da época do apartheid.
O bairro chama-se Langa, está situado no meio da Cidade do Cabo e se destaca como um dos mais bem preservados testemunhos das décadas em que o governo da África do Sul usou critérios raciais para segregar as pessoas que viviam sob sua jurisdição. Hoje com 120 mil habitantes, o lugar oferece um roteiro turístico indispensável para quem tem interesse em entender o apartheid.
Langa foi uma das primeiras “townships” (as áreas onde eram confinadas as populações urbanas negras, mestiças e asiáticas da África do Sul) construídas na Cidade do Cabo. O local surgiu em 1927, com o objetivo de receber migrantes que chegavam do campo para buscar emprego na metrópole e também famílias negras que haviam sido removidas de outras áreas da cidade, dando lugar para bairros brancos e zonas fabris.
Apesar da segregação, a cada vez mais industrializada África do Sul precisava de mão de obra barata em suas linhas de produção. Langa era um dos locais onde os operários eram forçados a viver. "Criou-se um país rico e próspero povoado por brancos sul-africanos que usavam trabalhadores negros para gerar sua riqueza”, escreve o jornalista francês Frédéric Fritscher no livro “África do Sul – Do apartheid a Mandela”.
Hoje, apesar de ainda se encontrar em situação de pobreza, o bairro mostra com orgulho suas lutas contra a discriminação racial no século 20 -- e preserva, com alguma tristeza, todas as memórias que o apartheid deixou em suas ruas e moradores.
Museu dos protestos
O principal atrativo turístico de Langa é um museu que funciona na antiga sede administrativa da "township", de onde a polícia monitorava todos os movimentos da comunidade.
No local, uma exposição fotográfica mostra que, apesar do medo de uma provável repressão brutal, os habitantes do bairro realizaram diversos protestos contra a sua situação de vida precária – principalmente a partir de 1948, quando o apartheid foi totalmente legalizado na África do Sul e restringiu a liberdade de movimento dos negros em todo o país.
Uma dessas passeatas, ocorrida nos anos 1960 e motivada pelos Partido Comunista Sul-Africano e Congresso Nacional Africano (ao qual pertencia Mandela), chegou a reunir 10 mil pessoas: três morreram baleadas.
Nesta época, o governo começou a exigir que toda a população de Langa carregasse um passaporte para se locomover entre a "township" e seus locais de emprego, que ficavam em áreas da Cidade do Cabo também frequentada por brancos.
Os documentos eram emitidos no próprio centro administrativo de Langa. Caso fossem pegos pela polícia sem o passaporte, era ali também que os "infratores" eram julgados. Prisão estava entre as possíveis punições.
“Houve uma época em que 500 pessoas passavam por dia pelo tribunal", conta Thami Sijila, 34 anos, morador de Langa e guia do museu. "Muitas delas se recusavam a carregar estes documentos e eram punidas por isso. Algumas eram trazidas no porta-malas dos 'umgqomo' [ou “latões de lixo”, como eram chamados, pela comunidade negra, os carros da polícia] de outras townships para serem julgadas aqui".
Discurso de conciliação
Apesar de seu passado tenebroso, o discurso da maioria dos moradores de Langa foi altamente influenciado pela política conciliatória de Nelson Mandela – que, após deixar a prisão em 1990, trabalhou para integrar brancos, negros, mestiços e asiáticos dentro da África do Sul.
"Eu sofria quando via minha mãe sendo tratada como lixo quando ela tinha que sair de Langa para trabalhar no centro. Éramos estrangeiros em nossa própria terra", lembra Sijila. "Mas hoje, apesar de ainda haver muitas desigualdes na África do Sul, sinto que estou em um país mais justo, com negros e brancos trabalhando para viver em um lugar melhor".
A atitude das crianças de Langa é a mesma: ao verem turistas brancos andando pelo bairro, elas gritam, em uníssono, “umlungu”, palavra zulu que quer dizer algo como “branquelo”. O guia dos visitantes apressa-se em dizer que não é um termo pejorativo, e logo os pequenos cercam os forasteiros para brincar e fazer perguntas sobre suas origens. E a mesma atitude é encontrada entre os adultos, que recebem os visitantes dentro dos tradicionais botecos conhecidos como "shebeens" e até em locais religiosos (como um contâiner dentro do qual trabalha um curandeiro xhosa, que faz remédios a partir de ervas).
Mas os resquícios do apartheid continuam a aparecer: ainda habitada apenas por negros (a maioria das etnias xhosa e sotho), Langa mantém-se como uma das localidades mais pobres da Cidade do Cabo. Nas paredes das construções locais (que variam entre casas de madeira humildes, barracos de favela e prédios parecidos com os da Cohab paulistana), aparecem panfletos do partido político Economic Freedom Fighters, de orientação socialista, exigindo que as terras tomadas da população negra pelos brancos sejam estatizadas "sem compensação".
Em busca de emprego – e de música
Langa também continua sendo destino de camponeses em busca de trabalho: dentro de um prédio de três andares com as paredes descascadas e ambiente escuro, homens e mulheres se amontoam em pequenos quartos enquanto procuram emprego na Cidade do Cabo. O aluguel da cama custa 20 rands por mês (cerca de R$ 5).
Apesar de não haver mais restrição para seus movimentos, não é fácil encontrar oportunidades na metrópole. Hoje, 25% da população economicamente ativa da África do Sul está desempregada. “Cheguei aqui há dois anos e ainda não encontrei nada”, conta Ntobe Kaia, de 36 anos, originário de uma zona rural perto de Port Elizabeth, a 750 km de distância. “É engraçado. Eu cresci fugindo dos brancos. Hoje, busco trabalhar com eles”.
Bem ao lado, porém, iniciativas surgem para movimentar a economia de Langa. Além de ser o centro de informações turísticas oficial do bairro, o centro cultural Guga S’Thebe vende lindos artesanatos, esculturas e pinturas feitos pelos habitantes da área. No local, há também um anfiteatro ao ar livre que, periodicamente, promove shows de música xhosa e sotho.
"É um lugar onde nos reunimos para expressar nossa cultura", diz um homem que parece o zelador do Guga S’Thebe. "Podemos fazer todo o barulho que quisermos, e agora sem medo da polícia".
COMO IR
Recomenda-se ir a Langa na companhia de um guia. Para o tour, a agência Wow Cape Town Tours é uma das mais indicadas. O turista também pode achar guias dentro do Centro Cultural Guga S'Thebe, que fica na esquina das ruas Washington e Church, no coração de Langa.
SAIBA MAIS SOBRE O APARTHEID
*O repórter Marcel Vincenti viajou à Cidade do Cabo a convite do South African Tourism e da companhia aérea South African Airways.
fonte: http://viagem.uol.com.br/
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