São cerca de 130 mil hectares com mais de mil grupos de pinturas rupestres, além de sítios com resquícios de aldeias pré-históricas ou até mesmo de importância paleontológica. O Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, reúne uma das maiores concentrações de tesouros arqueológicos do mundo, sendo local de descobertas que desafiam boa parte do que se sabe sobre o início da ocupação das Américas. Mas está seriamente ameaçado. Por escassez de recursos, centenas de funcionários encarregados de preservação tiveram que ser demitidos. Guaritas de observação estão vazias e depenadas, trilhas foram bloqueadas por árvores tombadas e desenhos pré-históricos já começam a sofrer com as intempéries e a ação de animais. Além disso, espécies que habitam a área, como onças e tatus-bola, tornaram-se alvos fáceis para caçadores.
Os funcionários das guaritas protegiam o parque de incêndios e da invasão de caçadores. Mas tivemos que demitir todos os trabalhadores da manutenção. Os últimos foram embora no mês passado. As guaritas foram depenadas, as pessoas roubaram pias, privadas e até placas de energia solar. Chegaram a arrebentar as paredes para levar canos e fios elétricos. As pinturas rupestres estão desprotegidas. É todo um patrimônio que está em perigo — descreve a arqueóloga Niède Guidon, presidente da Fundação Museu do Homem Americano (Fundham), que administra o parque, declarado Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco em 1991.
Responsável por descobrir o potencial científico do local, em 1979, e por conseguir a criação da área de proteção neste “mangue” arqueológico na cidade de São Raimundo Nonato, Niède está desolada. Os 270 funcionários demitidos tinham por função proteger as pinturas rupestres espalhadas pelo parque. Eles cuidavam para que fezes de animais não manchassem as pedras e também para que as rochas não se descolem, o que pode levar à perda dos desenhos pré-históricos. Caminhando pela reserva, já é possível ver consequências dessa falta de conservação. Pinturas rupestres estão sumindo com a ação de fezes de pequenos roedores, da umidade e de cupins e abelhas que fazem colônias nos locais.
UMA VISIONÁRIA DA ARQUEOLOGIANiède fez da Serra da Capivara a razão de sua vida. Ela chegou ao sudeste do Piauí nos anos 70, coordenando uma missão franco-brasileira para pesquisar a presença dos primeiros homens na região. A cientista catalogou as pinturas rupestres e centenas de achados como urnas funerárias e fósseis humanos. Do parque, surgiram novas teorias para a chegada do homem às Américas. Em março deste ano, por exemplo, foram anunciadas descobertas que balançaram os acadêmicos mundo afora. São ferramentas de pedra datadas de 22 mil anos, o que contradiz o mundialmente aceito modelo de Clóvis, segundo o qual os humanos chegaram ao continente vindos da Ásia, há 13 mil anos.
De acordo com Niède, a falta de verbas não afeta a área de pesquisas, sustentada pelo Ministério da Ciência e da Tecnologia. O problema está mesmo na conservação da área externa do parque, que tem um potencial enorme para novas descobertas e para atração de turistas. Segundo Niède, a Fundham vinha contando com recursos captados pela Lei Rouanet e verbas federais, mas o dinheiro não está sendo repassado.
De acordo com a cientista, no primeiro semestre, o governo federal enviou, por meio do Instituto Chico Mendes (ICMBio), órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente com o qual a Fundham compartilha a gestão da área, R$ 400 mil para todo o ano de 2014. De acordo com a ICMBio, foi disponibilizado, em 2012, R$ 1,7 milhão ao parque. Em 2013, foi investido R$ 1,087 milhão. Este ano, ainda serão empenhados R$ 300 mil. Niède, porém, diz que a entidade precisa de R$ 400 mil por mês para conservar o parque.
"Temos funcionários nossos atuando na área, mas não temos efetivo para substituir o trabalho feito pela Fundham. A gente evita incêndios, mas não consegue parar os ataques dos caçadores — reconhece o chefe do Parque da Serra da Capivara e representante do ICMBio, Fernando Tizianel. — Foram liberados R$ 400 mil para a manutenção da parceria com a Fundham, mas a fundação precisa de mais verbas para desenvolver seu trabalho.
POTENCIAL TURÍSTICO POUCO APROVEITADOAlém de dar margem à depredação do patrimônio cultural, a falta de investimento acaba com as chances de se fazer do turismo uma locomotiva local. Hoje, a Serra da Capivara recebe algo em torno de 20 mil visitantes por ano. Um número irrisório se comparado, por exemplo, com o complexo de Lascaux, um conjunto de cavernas na França repleto de pinturas rupestres, que atrai milhões de turistas anualmente, algo conquistado com a valorização do espaço.
Enquanto isso, um dos maiores problemas para o turismo na Serra da Capivara é o acesso. O local fica a 570km da capital, Teresina. O Aeroporto Internacional de São Raimundo Nonato, cujas obras já consumiram mais de R$ 25 milhões e se arrastam há dez anos, ainda não foi inaugurado. O atraso, segundo a Fundham, atrapalha a captação de recursos para projetos como o Museu da Natureza, que contaria a história das descobertas locais, com exposição de fósseis e artefatos.
O Piauí está perdendo 6 milhões de turistas ao ano, que é a média de visitantes nos patrimônios da Unesco. Estaríamos com toda a população empregada. É um potencial mal aproveitado — critica Niède Guidon.
Pesquisador do Museu Nacional da UFRJ e membro-titular da Academia Brasileira de Ciência, o paleontólogo Alexander Kellner vê a situação como reflexo da maneira como o Brasil vem tratando seus museus e fundações.
— É triste ver como o país cuida mal de seu patrimônio. Essa é uma região extremamente importante porque conta como a espécie humana chegou à América do Sul. É preocupante ver seu estado de abandono. Uma pintura rupestre não pode ser retirada do seu lugar e colocada num museu, por exemplo. E isso requer cuidados e investimentos diferenciados — explica.
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