A transmutação da água em vinho é um fenômeno muito verificado em Lalibela, um dos locais mais sagrados da Etiópia cristã.
Durante a madrugada, poucos antes de o sol nascer, nativos e peregrinos, vestidos com longos mantos brancos, tomam as ruas da cidade em silenciosa procissão. O cenário que os cerca é de pobreza: casas de barro, chão de terra batida, crianças subnutridas, cachorros ainda mais.
Cético por natureza, e convencido de que o passeio será apenas uma aventura cultural, sigo com dificuldade a multidão: a iluminação é parca e parece que, a qualquer momento, serei engolido por um dos muitos barrancos que desnivelam a cidade, encravada em uma longa cordilheira do Chifre da África, a 2.600 metros sobre o nível do mar.
Os etíopes, porém, conhecem cada palmo destes caminhos escuros e esburacados. A meta de sua marcha, afinal, é a área considerada pelo cristianismo ortodoxo como a Jerusalém africana – localizada no meio de Lalibela e que, subitamente, transforma uma cidade miserável em um mundo encantado de clérigos rezando entre 11 igrejas esculpidas a partir das montanhas locais.
Coincidência ou não, a primeira parada da procissão é a igreja chamada "Casa do Salvador do Mundo" (em amárico, o principal idioma etíope, Bed Medhane Alem). Trata-se de um edifício de 12 metros de altura, cercado por 34 colunas e todo talhado a partir de um grande morro de rocha vulcânica.
Ao se prostrarem diante da "Casa do Salvador", dezenas de fiéis mostram um semblante sereno, como se tivessem subitamente alcançado a redenção. Cânticos embalados por tambores dominam o ar e, lá dentro, em um ambiente cavernoso, sacerdotes rezam ao lado de grandes imagens de São Jorge, o patrono da Etiópia.
Dizem algumas lendas locais que o santo guerreiro supervisionou a construção das igrejas de Lalibela. As pegadas de seu cavalo ainda estariam impressas nos caminhos que conectam os templos. Como eu iriar ver logo em seguida, percorrer essas trilhas seria sentir na pele que, em Lalibela, a fé é capaz de inebriar o mais cético dos turistas.
Zeladores da Arca
Ao deixar Bed Medhane Alem, cruzo um túnel estreito aberto em uma grande rocha e, com o dia amanhecendo, saio em um pátio pontuado por mais três igrejas: Bet Maryam, Bet Meskel e Bet Danaghel. Encostados em uma parede vulcânica, como um quadro sacro em alto relevo, 20 homens leem silenciosamente o Kebra Negast (“A Glória dos Reis”), o livro fundamental da cultura etíope.
Escrita no século 14 d.C., e de autoria desconhecida, a obra é uma das fontes da forte religiosidade que emana da Etiópia: suas linhas afirmam que, no século 10 a.C., após visitar Jerusalém, a rainha de Sabá (que, supostamente, se localizava no que é hoje solo etíope) engravidou do rei Salomão.
Seu filho, Menelik, teria dado origem a uma longa linhagem de monarcas que usariam seu suposto sangue salomônico para consolidar poder e convencer os etíopes de que todos eles estavam vinculados ao líder hebreu (entre estes reis, destaca-se Haile Selassie, messias do rastafarianismo e que reinou sobre a Etiópia em boa parte do século 20).
A história também deu origem à crença, generalizada entre os nativos, de que a Arca da Aliança e os Dez Mandamentos se encontram hoje na Etiópia, mais precisamente na cidade de Aksum, 320 km ao norte de Lalibela. Segundo se conta nas ruas do país, tais objetos sagrados (que, para a maioria dos historiadores e monoteístas do mundo, estão hoje desaparecidos), teriam sido roubados de Jerusalém por Menelik e trazidos para a terra de sua mãe.
“A Arca está em Aksum, mas ninguém pode chegar perto dela, exceto os grandes patriarcas da nossa igreja”, me diz um sacerdote chamado Ermias, no ambiente escuro da igreja Bet Maryam, iluminado apenas por pequenas frestas em forma de cruz abertas nas paredes de pedra. “Fomos abençoados como os zeladores da Arca e nossa missão é dedicar a vida à compreensão e adoração das leis divinas”.
Além de costumes únicos e edifícios fantásticos talhados em rocha, esta fé gerou uma iconografia fascinante: pinturas extremamente coloridas de episódios bíblicos e do Kebra Negast podem ser vistas por toda Lalibela (os personagens têm todos feições etíopes) e, na igreja Bet Golgotha, é possível admirar as imagens dos 12 apóstolos, em tamanho real, talhadas de maneira magistral nas paredes do templo.
Obra-prima
A obra-prima de Lalibela, porém, encontra-se isolada no setor oeste da cidade. Trata-se da igreja Bet Giyorgis, cuja estrutura monolítica, com 15 metros de altura, foi esculpida a partir de um único bloco de rocha vulcânica. O edifício fica dentro de um buraco retangular, com apenas seu topo cruciforme aparecendo na linha da superfície do terreno que o cerca.
É do alto que o turista primeiro vê a igreja: lá embaixo, entre os devotos rezando, mulheres costumam secar grãos de “teff”, o cereal que é a base da “injera”, a massa mais importante da culinária etíope (e que é comida com molhos, carnes e legumes fortemente temperados).
Observada em detalhes, Bet Giyorgis fascina: sua estrutura é totalmente independente dos paredões que a cercam. Ela foi talhada, com cinzel e martelo, de cima para baixo: os artesãos começaram cavando a superfície do morro e, à medida que entravam na terra, iam dando forma ao templo, que hoje exibe forma e simetria perfeitas.
Se, no século 19, europeus tentaram provar que os povos da África eram atrasados e, por isso, precisavam da colonização, Lalibela é uma mostra de que a realidade não era bem assim: boa parte do complexo religioso da cidade, incluindo Bet Giyorgis, foi construído entre os séculos 12 e 13 d.C., e sua riqueza arquitetônica intriga estudiosos até hoje.
O mentor da maioria das obras teria sido um monarca chamado Lalibela (1181-1221): na época, a cidade, batizada de Roha, era a capital de um grande reino africano, comandado pela dinasia Zagwe.
Impossibilitado de fazer peregrinações a Jerusalém, então sob o domínio do islã, o rei, um cristão fervoroso, resolveu erguer uma cidade santa em seu quintal. E assim surgiram muitas das igrejas esculpidas (e o atual nome) do lugar.
A preservação deste cristianismo único, que chegou à Etiópia no século 5 d.C. trazido por missionários bizantinos, deve-se em grande parte à recusa do povo etíope em se deixar dominar, séculos mais tarde, por potências europeias. A Etiópia é o único país africano que jamais foi colonizado (a Itália tentou, sem sucesso) e isso ainda se reflete em diversos aspectos culturais da nação: além de preservar sua escrita única, o país tem um calendário próprio, que está oito anos atrás do resto do mundo (sim, o território se encontra hoje em 2006).
A sensação em Lalibela, entretanto, não é a de estar atrasado no tempo, mas em contato transcendente com o passado: entro na Bet Gyorgis e, em seu interior fracamente iluminado, encontro dois sacerdotes rezando em "ge´ez", um idioma litúrgico que surgiu no Chifre da África há pelo menos 4.000 anos e que eu vinha buscando escutar desde o início de minha viagem.
Saio de dentro do templo com a certeza de que, na Etiópia, a fé é sólida e inesgotável como as igrejas de Lalibela – e é capaz de transformar simples turistas em emocionados peregrinos.
COMO IR
Do Brasil, é possível viajar à Etiópia fazendo escala na África do Sul, Turquia, Europa e Oriente Médio, com companhias como a South African Airways, Turkish Airlines, Lufthansa e Emirates. Hoje, porém, a maneira mais fácil é tomar um voo da Ethiopian Airlines no aeroporto de Guarulhos e ir até Adis Abeba (a capital etíope) em 13 horas, com uma rápida parada no Togo.
Em Adis Abeda, é fácil achar voos para Lalibela (a jornada dura cerca de uma hora). No entanto, se o turista estiver sedento por aventura (ou com o dinheiro curto), é possível pegar um ônibus em Adis e encarar uma epopeia de dois dias até a cidade sagrada, entre estradas tortuosas, ônibus caindo aos pedaços e muito poeira. As lindas paisagens do país – e a chance de interagir com os nativos – fazem a canseira valer a pena.
fonte: http://viagem.uol.com.br/
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