domingo, 3 de janeiro de 2010

Especial: Dominica a ilha intocada


Em Dominica, praias de areia branca e fina como as do Brasil são quase uma exceção. Em Rosalie, por exemplo, o mar avança, manso, sobre as raízes das palmeiras. O banho refrescante na piscina natural sob as Cataratas Vitória recompensa quem se dispôs a escalar (por duas horas) uma elevação coberta pela densa floresta tropical


Pudesse hoje o descobridor Cristóvão Colombo velejar novamente pelo Caribe, apenas esta ilha lhe pareceria familiar. Ele reconheceria as montanhas escarpadas revestidas pela densa floresta tropical, os lagos misteriosos. E não teria por que se assustar com complexos hoteleiros ou polos de turismo popular. Eles inexistem entre os tesouros naturais - que serviram de cenário até aos piratas de Hollywood - escondidos por trás de seu litoral rochoso


um manto verde cobre as montanhas da ilha
As extensas florestas tropicais são o que de mais valioso existe em Dominica. Espécies raras de aves, como a amazona-imperial (Amazona imperialis), encontram neste isolamento seu último refúgio. Visitantes podem explorar este mundo singular seguindo as antigas trilhas dos caraíbas, ou caribes. Nativos remanescentes vivem em uma reserva indígena na parte leste da ilha

O Homem Que já transportou Johnny Depp, Orlando Bloom e Keira Knightley usa uma cerrada barba negra: "Henderson", se apresenta, enquanto puxa os remos. "Henderson" e mais nada. Um vento quente permeia os coqueiros. A faixa da margem parece impenetrável, reticulada pelo fino emaranhado das raízes dos mangues e paus-campeches (Hematoxylon campechianum). De dentro do paredão verde da floresta tropical surge uma garça-azul, brque cruza o rio com pesadas batidas de asas. Sobre o toco de árvore, o enorme iguana - do tamanho de um bassê - assa no calor do sol. Tudo é muito quieto



Durante alguns minutos, o impacto dos remos na água e o ranger da madeira são os únicos ruídos. Então Henderson se lembra de suas obrigações como guia e aponta com a cabeça para o lado. "When you look right, you see a Gummibaum", ("Quando você olha para a direita vê uma seringueira"), informa, misturando inglês e alemão - espécie de ladainha que aprendeu com turistas.
Logo depois, sem motivo aparente, cai uma dessas chuvas tropicais que duram só uns minutos e nos deixam surpresos e encharcados. Quando o tamborilar da água cessa e a mata brilha quieta, novamente, sob a luz da tarde, Henderson começa a cantar, cadenciando o canto com o movimento dos remos. Sua voz, parecida com a de Bob Marley, é alta, áspera e rouca - um gondoleiro do Caribe.

Keira Knightley era incrivelmente linda, confidencia esse gondoleiro dos trópicos, com um ar de saudade nos olhos. Orlando Bloom não desgrudava do celular e Johnny Depp - o excêntrico capitão-pirata, de movimentos desajeitados e voz afetada - mantinha-se completamente imerso no papel, mesmo fora do set de filmagem.
Em Dominica quase todos têm uma história para contar sobre o elenco de Hollywood que, há alguns anos, invadiu a ilha - às centenas - para filmar as partes dois e três de Piratas do Caribe. No Rio Indian eles construíram a casa-da-árvore da enigmática vidente "Tia Dalma"; no sul, perto de High Meadow, surgiram um vilarejo de canibais e uma imensa ponte pênsil, de um cume de montanha a outro.

Durante alguns meses, o minúsculo Estado caribenho foi arrancado de sua sonolência. Época boa para os dominiquenses, de trabalho abundante - especialmente para motoristas, figurantes ou construtores de palco -, hotéis lotados e restaurantes cheios. A equipe de filmagem deu grandes festas na capital, e os astros, nas horas de folga, fretavam iates para mergulhar ou observar baleias. Mas assim que Hollywood partiu, Dominica retomou a velha rotina.
O ritmo de vida aqui é completamente diferente do das vizinhas ilhas francesas de Guadalupe e Martinica. Segundo os nativos, Dominica é a única região do Caribe que seu descobridor, Cristóvão Colombo, reconheceria caso voltasse à região. Não existem fortalezas hoteleiras, praias salpicadas de guarda-sóis, resorts, butiques chiques ou grandes discotecas. Um país abandonado a si mesmo, afortunadamente ignorado pelo turismo em massa, com um nome tão desconhecido que as malas-postais, não raro, são desembarcadas na vizinha República Dominicana.



Ao Entardecer dirijo ao longo do litoral, no rumo sul. Alguns quilômetros depois da capital, Roseau, a estrada desvia para o interior do país. O trajeto das montanhas íngremes serpenteia para cima e para baixo, cruza rios caudalosos, atravessa vilarejos e plantações de banana. Quando chega a noite, sou colhido por uma escuridão impenetrável. De vez em quando a luz dos faróis atravessa o denso matagal. Paro o carro diante da única casa bem iluminada, no alto de uma colina. Cigarras cantam. No horizonte, do outro lado do oceano negro, brilham as luzes de Martinica.

Um ritmo de calipso em volume altíssimo transborda pelas janelas até a estrada. Em um pequeno recinto quadrado cujas paredes exibem pôsteres de garotas sensuais e cujo telhado se apresenta enrugado, um punhado de pessoas dança ao som do DJ. Ele instalou seu laptop no balcão do bar, entre garrafas de cerveja e de rum. Ao lado dele, Sam Raphael está encostado, indiferente, no bar. Trata-se de um negro alto e esbelto, de shorts brancos, camiseta e tilintantes pulseiras de prata no pulso. Sam é proprietário do hotel próximo - o Jungle Bay; esta noite seus funcionários convidaram alguns hóspedes para dançar e festejar juntos no vilarejo, Petit Savane.



Sam nasceu em Dominica, mas durante uma crise econômica na década de 60 do mar, e pôs em prática seu grande sonho: erguer um hotel pequeno, exclusivo, vinculado apenas à natureza.

Os moradores de Petit Savane o chamaram de louco. Só quando Sam lhes ofereceu trabalho eles se dispuseram a mudar de opinião. Entretanto, ninguém tinha experiência em construção. Os habitantes do vilarejo eram lavradores, não pedreiros ou marceneiros. "Começamos ao acaso, desse no que desse", recorda Sam. "Em determinado momento, cada um descobriu o que sabia fazer melhor."
Sam se preocupou em interferir o mínimo possível na paisagem. Se apesar disso fosse necessário derrubar árvores, ele usaria a madeira para fabricar móveis. "Eu queria mostrar que é possível fazer as coisas de modo diferente", explica. "Onde é que existe isso, empregados e hóspedes festejando juntos à noite?", pergunta ele, apontando uma garrafa para os dançantes. Sam Raphael não é exceção. A ilha inteira está apostando no turismo de pequena escala. O maior hotel tem 70 quartos; todos os outros - na verdade casas gerenciadas por famílias - são menores. As pessoas já sentiram, há tempos, que o primitivismo de sua ilha é a riqueza a ser protegida. Orgulhosos, eles chamam Dominica de "nature island of the Caribbean" ("a ilha da natureza no Caribe").

Observada do oceano, essa porção de terra parece um mundo esquecido. A neblina cobre montanhas verde-escuras; uma espuma branca roça o litoral rochoso. Vindos do interior do país, os arco-íris se dobram sobre o inquieto mar aberto. A floresta tropical cobre dois terços de Dominica, e nas profundezas de sua mata existem cachoeiras, papagaios raros, fontes termais. Os nativos ainda contam histórias sobre um misterioso lago efervescente lá em cima, nas montanhas, rumo ao qual parto na manhã seguinte.

Caminhamos durante três horas pela mata cor de esmeralda. O ar é tão úmido que quase não se sabe se está chovendo ou não. Uma trilha estreita leva montanha acima e montanha abaixo, cada vez mais alto, para dentro das nuvens. Com esforço consigo seguir meu acompanhante, cuja reluzente mochila Spiderman vermelha e azul procuro não perder de vista. Aaron Rolle é um homem pequeno, em botas de borracha, que raramente ri. Sem jamais errar o passo, abre seu caminho em meio à folhagem. Há 20 anos ele trabalha como guarda florestal no Parque Nacional de Morne Trois Pitons, que se estende por quase 7 mil hectares.



No caminho, Aaron me mostra árvores chatanny (da espécie Sloanea), de 300 anos - a madeira é dura demais para ser aproveitada no que quer que seja -, e gigantescas samambaias. Ele me deixa cheirar a resina da seringueira, cujo perfume espanta os mosquitos, e corta um pedaço de casca de bois bandé, comercializada como afrodisíaco após ser conservada em rum. Beija-flores e borboletas ziguezagueiam por entre os galhos; atrás de uma pequena elevação uma cotia - roedor que mais parece o resultado de cruzamento de ratazana com leitão - foge de nós.

"Isto é o bom de Dominica", diz Aaron. "Aqui não temos predadores perigosos, nem escorpiões, nem serpentes venenosas. E praticamente nenhuma criminalidade. O pior que pode acontecer a você na ilha é tropeçar e cair."


Cruzamos Uma Crista desprovida de árvores, e logo a nossa frente está o "Vale da Devastação". A terra argilosa tem o brilho amarelo do enxofre. Densas colunas de vapor escapam das fendas no chão; uma água prateada, efervescente, borbulha em depressões rochosas e corre, sibilante, por cima das pedras. Ao descermos cuidadosamente a encosta, o fedor do enxofre quase nos sufoca. Dominica tem origem vulcânica. Este vale foi escavado por rios de lava incandescente, e seu calor subterrâneo aquece também o "lago ebuliente", que alcançamos logo em seguida.
Os dominicanos afirmam que esta é a maior lâmina líquida do gênero no mundo. Uma cratera de 62 metros de largura, cheia até a borda com água borbulhante, quase sempre envolta em grossa nuvem de vapor. "Um guia imprudente certa vez tentou descer por cordas e caiu na água escaldante", informa Aaron. Com graves queimaduras o homem foi levado de helicóptero diretamente para Martinica. Ele permaneceu por sete meses internado numa uni-dade de terapia intensiva da possessão francesa.

A aron mora em Laudat, o vilarejo dominiquense mais distante do nível do mar. Ele chegou à área de proteção ambiental em 1979, quando, ainda estudante, ajudou a consertar os graves danos provocados pelo furacão "David". Mais de 30 pessoas perderam a vida no cataclismo; milhares ficaram feridas. Setenta e cinco por cento da população ficou desabrigada. A pele de Aaron é visivelmente mais clara do que a da maioria dos outros habitantes da ilha, e seus traços faciais são quase asiáticos. "Minha mãe era caraíba nativa", explica ele. Cerca de 3 mil kalinagos (caraíbas) ainda vivem em Dominica, em território que desfruta de autonomia administrativa. Um século antes da chegada de Colombo eles já povoavam a ilha. Mas diante dos europeus foram obrigados a recuar, cada vez mais, rumo ao noroeste do país, de difícil acesso. Dominica é a única ilha do Caribe na qual essa população ainda possui sua própria reserva de solo.

Na Manhã Seguinte, tomo o caminho de Roseau. A capital dominiquense produz no visitante a impressão de um paciente cujos medicamentos foram dosados de maneira errada. A cidade oscila entre a extrema letargia e a hiperatividade. Poucos carros rodam pelas ruas estreitas; mica ecoa das lojas, alunas em meias azuis até os joelhos passeiam a esmo, e rastafáris sorridentes descansam em poltronas confortáveis.


A atmosfera muda subitamente quando um transatlântico gigantesco atraca no píer. Enorme, impecavelmente branco e liso, sobrepuja em tamanho as casas tortas, em cores pastel - uma nave espacial de outro planeta. Então, repentinamente, a cidade enlouquece. Vendedores ambulantes de suvenires apare-cem de todos os lados, as lojas duty-free abrem as portas, guias oferecem excursões, motoristas de táxi brigam em voz alta pela clientela. Pouco depois o fantasmagórico movimento acaba, e os vira-latas têm as ruas novamente para si.
Meu destino é uma casa de esquina na Rua Cork, no centro. Cortinas fechadas impedem a entrada do barulho e da luz exterior; um minúsculo ventilador trava uma batalha inútil contra o calor sufocante. No primeiro andar, Violet Wilfreda Joseph espera por mim. Ela nasceu nesta casa, no dia 28 de janeiro de 1899.

Ao lado de lagos ebulientes e caraíbas verdadeiros, esta é mais uma particularidade de Dominica: as pessoas são espantosamente longevas. Muitos centenários vivem na ilha. O exemplo mais famoso é Ma Pampo, que, ao morrer, em 2003, tinha, completos, 128 anos de idade. As pesquisas revelam sempre que os dominicanos se consideram as pessoas mais felizes do mundo - é bem possível que a longevidade esteja vinculada à felicidade.


Violet Joseph me recebe em um vestido de cor clara. Trata-se de mulher mi-núscula, com pele que parece pergaminho esticado e cabelos brancos como neve. Sobre a cômoda ela mantém, ao lado de incontáveis imagens de Maria Santíssima e de crucifixos, uma certidão da Casa Branca com a qual o presidente americano Bill Clinton a cumprimentou por seu centésimo aniversário. Em 1918 ela emigrou para Nova York, onde permaneceu pelos 50 anos seguintes. Seu marido trabalhava como ascensorista; ela se empregou em uma fábrica têxtil.

"Quando havia 1 metro de neve nas ruas e eu não podia cozinhar porque os encanamentos de gás estavam congelados", lembra Violet, "eu sentia falta de Dominica." Ela não perdeu o sotaque americano. Seu apartamento ficava no famigerado bairro de imigrantes Hell's Kitchen ("cozinha do diabo"). Os italianos do lugar a teriam aconselhado a cozinhar com azeite de oliva. "Esse é o segredo de minha longevidade", garante. Só isso? Violet abaixa os olhos, sem jeito. "Quando meus pais me geraram, ambos ainda eram virgens. Uma criança dessas é forte", diz ela com um sorriso.


Um pouco mais tarde encontro-me, ainda em Roseau, com Annette Peyer-Lörner, suíça que, em companhia do marido alemão, toca um pequeno hotel ecológico perto de Salisbury. À luz do entardecer seguimos de carro pela estrada costeira rumo ao norte. "O Caribe é o sonho de qualquer um", diz Annette ao volante. "Muitas ilhas perderam sua capacidade de atração; Dominica faz melhor: para os amantes da natureza, aqui existe tudo o que uma pessoa poderia desejar".

Será que todo esse fascínio resiste diante do triste estado das estradas e do desestímulo à abertura de novas rodovias? Nosso carro dá um forte solavanco. "Desculpe", reage Annette. "Este buraco deve ser novo, eu ainda não o conhecia."


Impressionados com o cenário de múltiplas montanhas, os índios caraíbas, residentes na ilha desde o século XIV, se acostumaram a chamá-la de waitukubuli - "estatura alta". Cristóvão Colombo batizou-a de Dominica porque a descobriu em um domingo, em 1493. No período colonial a ilha experimentou, alternadamente, os domínios britânico e francês - até que os súditos de sua majestade, a rainha da Inglaterra, prevaleceram. Volta e meia havia distúrbios nas plantações. Escravos foragidos e caribes se escondiam no interior selvático e praticamente impenetrável do país. Em 1978, a pequena Dominica - de 46 quilômetros de comprimento por 25 de largura - tornou-se uma república independente dentro da Comunidade Britânica de Nações.

Atualmente é um dos menores países do mundo. Seus 70 mil habitantes, em sua maioria descendentes de escravos africanos, vivem da agricultura e, agora, também do turismo crescente. O desemprego é, contudo, elevado. Os índices de emigração, também. O governo mantém ligação estreita com o de Caracas, mas o plano do presidente venezuelano Hugo Chávez de construir uma refinaria de petróleo bem defronte à ilha está gerando inquietação entre os dominiquenses.

fonte:http://revistageo.uol.com.br/cultura-expedicoes/4/artigo145172-1.asp

Ismailon Moraes

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